03 março, 2007

Esperei um milagre...


Two Sisters - Maurice Denis


Olho para ela e não dá para acreditar. Parece que estou a viver um sonho mau.
É o mesmo rosto bonito, olhos grandes, castanhos, expressivos. Mas a cara afilou, o corpo quase desapareceu numa magreza incrível.
Estou diante da minha querida amiga, em fase terminal duma doença inexorável, até não sei quando...
Só Deus sabe.

Cuidados paliativos do IPO, verdadeiro hotel 5 estrelas, para quem já perdeu a esperança de viver e aguarda o fim.
Estreito-a e beijo-a com jeitinho, por causa do tubo de alimentação e converso, pergunto, pergunto...O filho vai lá dormir alguns dias da semana, o marido passa lá os dias.
Entretanto, o telefone toca imensas vezes, amigos e família acarinhando-a.

- Queres dar uma voltinha?
- Não, já hoje fui...Mas está bem!
Sai da cama e pelo pé vem sentar-se na cadeira de rodas.
- Queres ir a 50 ou 100???
Ri-se...
-A 50...Assim está bem!!!

Dirigimo-nos para uma salinha e olhamos através da janela para a cidade iluminada.
Algumas plantas, bem tratadas, decorando a saleta, em tons de azul.
Passamos depois por uma sala maior, de visitas, com sofás azuis. Um quadro com girassóis de Van Gogh chama-me a atenção.
- Julinha, quando olhares para aquele quadro, pensa em mim...
Ri-se...
- Olha um quadro de Matisse, uma colagem, gosto tanto! - digo eu.

Percorremos um corredor enorme e olho de soslaio para os quartos.
O coração aperta-se, pensando no sofrimento, angústia e desespero das pessoas que avisto deitadas.

Voltamos para o quarto.

Chega o jantar, trazido por uma enfermeira extremamente carinhosa. Sôfrega, levanta a tampa. Canja, salada russa, maçã assada.
Começa a comer a canja, mastiga e deita fora. Apenas para sentir o sabor dos alimentos. Quase nada retém dos alimentos normais, apenas iogurte e cevada.
Conversamos mais um pouco, acaba o jantar.
- É o meu karma...diz ela.

Aceita tudo com muita calma, com uma enorme coragem.
O pescador desfolha uma revista. Sei que está a fazer um esforço enorme para se manter calmo.

Despedimo-nos, até um dia destes.
Saímos para o exterior e finalmente as lágrimas rebentam num choro silencioso.
Já não tenho que ser forte, já não tenho que brincar com a minha querida amiga, rir com ela, aproveitar os momentos que restam.

Não, não me digam, por favor, que não querem VIVER!

(Imagem da net)

20 comentários:

poetaeusou . . . disse...

Para meditares Flôr grande...
Sede felizes e recordaremos quem parte; os amigos desaparecem quando somos infelizes
in)Eurípedes.
bj)

Rodolfo N disse...

Tremendo relato.Conmovedor...

Pitanga Doce disse...

Um beijo muito carinhoso, Girassol.É só o que te posso dizer.
Da amiga Pitanga Doce.

bettips disse...

Sei como. e quando. quanto. eu não consegui ficar até o depois. Guardo os olhos e o riso, tudo caladinho, comigo, à cabeceira da cama, uma foto pequena com a gente a rir-se numa estrada do Alentejo. Um abraço muito amigo, minha querida, guarda bem os teus amores (temos estas sintonias estranhíssimas Hopper, entre o céu e a terra...e agora, a lágrima inútil, quero dizer "hopeless" que é mais isso. B.

Kalinka disse...

Olá Girassol

Pois é assim a Vida...
Trabalhei durante alguns anos numa enfermaria de medicina interna, idosas e, em fase terminal...
Custa muito ver o sofrimento destas pessoas...se custa!!!

Fico sem palavras perante certas situações. Estou aqui para te abraçar, quando mais precisares.
Coragem.
Beijitos.

Anónimo disse...

ler o teu relato...
fiquei sem palavras Girassol

:-)

Maria disse...

Girassol

Tenho tantas palavras cruzadas na cabeça que escreveria um testamento.
Digo-te apenas o seguinte: há uns anos passei 15 dias "de férias" no IPO em Lisboa. A primeira semana foi para "me ambientar", já que estive lá só a reservar a cama (vê se é possível). A segunda semana, num pós-operatório.
Não descrevo. Porque não tem descrição. Só visto. E eu vi de TUDO. Como tu sabes.
Desde o dia em que saí de lá, vejo a vida de uma forma completamente diferente. Valorizo as mais pequenas coisas, dou de barato outras que eu julgava importantes.
Porque sei como é, deixo-te um beijo e um abraço apertadinho, muito apertadinho...

Caracolinha disse...

Olha querida ... deixaste-me absolutamente "pregada" a este post ... de olhos a brilhar ... e sem palavras ...

A não ser que só de uma pessoa MUITO ESPECIAL podiam sair estas palavras ... que bom que vocês se têm ...

Um beijinho encaracolado e profundamente emocionado ...

Licínia Quitério disse...

E neste momento sentes dentro de ti um enorme PORQUÊ?
A resposta nunca a terás. Resta-nos um amargo consolo. Os que perdemos encontraram a grande paz. Entretanto, louvemos a vida, mesmo por entre o choro.

Abraço-te.

Leticia Gabian disse...

Querida Flor Maior,
Senti em mim tudo o que escrevestes aqui, menos a tua força. Passo por um momento semelhante, com uma amiga-colega de trabalho, a quem conheço há mais de 26 anos, mas não consigo agir como tu, nem ter a força que demonstras ter. Falo com ela ao telefone, fazendo um esforço imenso pra não chorar. A última coisa que desejo é estar em frente a ela e desabar. Sei que o que faço é covarde e pouco, mas é só o que consigo.
Diante de ti, me senti pequenininha como pessoa.

Um beijo, cheio de admiração.

Fernanda disse...

Amiga
Os meus olhos estão húmidos...
Recordo momentos que também já vivi(pai)e que todos os dias relembro e me dão uma força enorme para ver a vida com outros valores.
"é preciso sorrir mesmo nos piores momentos" frase esta do meu querido e amado pai.
Bjs

Cristina disse...

Girassol,
A vida infelizmente é assim...
Sinto muito pela tua amiga que se encontra tão doente, é muito triste passar por uma coisa destas...
Eu peço sempre a Deus que me dê uma morte rápida, mas só ele é que sabe...
Continua com a tua força para ela
:)
beijinhu grande

Papoila disse...

Girassol:
Todos os meus amigos ficam em nós guardados pelos risos que partilhamos, as lágrimas que nos uniram, as vitórias que celebramos. Girassol este teu relato é comovedor mas revela a cumplicidade que te une à tua amiga.
Um beijo e um abraço

Mocho Falante disse...

Minha querida fiquei com um enorme nó na garganta...e a única coisa que posso fazer e mandar-te daqui um grande beijo cheio de carinho

Isamar disse...

Minha Querida!

Uma história de vida, muito triste, igual a muitas outras. Infelizmente!Esta doença foi a pior do século XX. Continuará a sê-lo no século XXI? Tantas vidas ceifadas com tanta dor! Para todos! E o fim inexorável, à vista!
Recuei no tempo, mais de vinte anos. Tantas lágrimas amiga!Um dos meus melhores amigos partiu assim. Grande desgosto!
Beijinhos

Anónimo disse...

Meus amigos, agradeço de todo o coração a força e os abraços!
Beijinhos

Anónimo disse...

Oi Ana E Pescador,
Eu sei o que sentiram, o que sentem
e comovi-me com o relato. Tenho um irmão meu quase assim, também no IPO, e eu também não estou bem a partilhar tanto sofrimento, e sem poder fazer nada.
É muito pesado, eu sei. Vou pedir, a quem peço pelo meu irmão, que vele também por ela. Chico

Paúl dos Patudos disse...

Amiga, estou sem palavras.
Tu sabes o quanto eu prezo a minha frágil vida que me é dada a viver , por tudo isso não a posso desperdiçar.
bjo
Ana Paula

LUA DE LOBOS disse...

sem mais nada a dizer apenas: AGUENTA. um xi muito apertado
maria
P.S. em 3 meses perdi duas amigas e outra em fase terminal...

as velas ardem ate ao fim disse...

Um abraço e um bjo apertadinho.